Por que Rondônia é o estado que mais mata mulheres no Brasil
Jaru, 29 de agosto de 2023
Faz três meses que Carla* (que teve o nome alterado pela reportagem) não vê os filhos. Na última vez que tentou, na véspera do dia das mães, ela foi esfaqueada pelo ex-marido em frente da casa. Os golpes deixaram marcas no peito, no braço e nas mãos. O agressor só parou porque um motoboy que passava na rua o segurou, e Carla conseguiu fugir.
“Ele tentou arrancar o meu olho e quebrar o meu pescoço”, conta Carla à DW. “Ele só não me matou porque ele não tinha uma arma”, afirma a vítima por telefone.
Para viver, Carla, 34 anos, se escondeu. Ela era casada desde os 18 com o agressor, que sempre foi ciumento. O problema escalou quando ela passou num concurso público e foi fazer um treinamento fora. Foi quando ela descobriu que estava sendo espionada por meio de um aplicativo instalado secretamente no celular pelo marido.
A tentativa de feminicídio está sendo investigada pela polícia civil de Rondônia, onde o crime ocorreu. O estado tem a maior taxa de feminicídio do Brasil: foram 3,1 vítimas por 100 mil habitantes em 2022. O número é mais que o dobro da média nacional, que ficou em 1,4, apontam os dados do Anuário Brasileiro de Segurança Pública.
O estado também é campeão em homicídios femininos – a taxa foi de 11,2 vítimas por 100 mil habitantes, quase quatro vezes acima da média do país (3,9).
“Aqui, como em toda a sociedade, a gente ainda vive um sistema do patriarcado muito arraigado, muito forte, com ideologias machistas. Isso contribui para a objetificação e o subjugo da mulher”, comenta Débora Machado, da Defensoria Pública de Rondônia, que acompanhou o caso de Carla.
Ausência e despreparo do Estado
Os estudos sobre feminicídio classificam esse crime como “parte final” de um processo de agravamento da violência, marcado por terror, menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Considerado hediondo pela Lei nº 13.104, de 2015, o feminicídio é evitável: políticas públicas de prevenção, proteção e acolhimento são apontadas como ferramentas eficientes.
“A mulher denuncia e muitas vezes ela não tem para onde ir. Mesmo quando existe medida protetiva dada pela Justiça, o agressor não deixa de perseguir a mulher porque ele imagina que a polícia não vai chegar a tempo de evitar o crime. E não chega mesmo”, analisa Benedita Nascimento, ativista e membro fundadora do Fórum Popular de Mulheres e do Movimento Articulado de Mulheres da Amazônia, em Rondônia.
Para Nascimento, que atua na rede de enfrentamento contra a violência doméstica na capital Porto Velho, o empenho de delegadas e promotoras é notável, mas a falta de pessoal ajuda a explicar a alta taxa de feminicídio.
“Há um déficit de serviço na área de segurança pública. As delegacias da mulher não têm o aparelhamento necessário, equipe técnica e policiais suficientes. É por isso que as mulheres estão morrendo”, justifica, pontuando que há oito delegacias especializadas para todos os 52 municípios de Rondônia.
Questionada, a Secretaria de Segurança Pública do estado não respondeu.
Além da ausência do estado, Nascimento vê despreparo de vários setores da sociedade para enfrentar o grave cenário. “Estou falando de escolas, de unidades básicas de saúde, de equipes de médico da família, de líderes em igrejas que não estão preparados para fazer leituras de sinais de uma mulher, de uma família, que vive em situação de violência. Temos uma atuação particular dos movimentos sociais, mas falta o resto”, afirma.
Igrejas e opressão da mulher
Com um olhar crítico sobre os comportamentos da sociedade, Marcia Oliveira, professora da Universidade Federal de Roraima (UFRR) e pesquisadora do Observatório das Migrações em Rondônia, ligada à Universidade Federal de Rondônia (Unir), estuda há anos o contexto da produção desta violência.
“Ela vem sendo construída. Na Amazônia, historicamente, houve muita violência na formação dos próprios estados. É um processo contínuo de violação dos direitos humanos, violências contra indígenas, aos mais pobres. Vai se criando um estado de violência”, destaca Oliveira em entrevista à DW.
O crescimento no campo político da direita conservadora, argumenta Oliveira, teria uma influência ao provocar o silenciamento das mulheres, principalmente nos movimentos sociais, e promover a repressão da participação política feminina nos quadros políticos.
Outro ponto teria a ver com a expansão das igrejas evangélicas na região. “O crime de honra parece mais aceitável em Rondônia e em outros estados no Norte, como Roraima. Isso tem a ver com aumento das religiões fundamentalistas, na qual as mulheres são tratadas com muita submissão, com muita subjugação”, argumenta Oliveira, doutora em Sociedade e Cultura na Amazônia pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM).
Um levantamento recente assinado por Victor Araújo, pesquisador associado ao Centro de Estudos da Metrópole, com sedes na Universidade de São Paulo (USP) e no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), mostrou que em 2019 foram abertas 6.356 igrejas evangélicas no Brasil – uma média de 17 novas igrejas por dia.
Rondônia se destaca como um exemplo emblemático dessa expansão: antepenúltimo no ranking dos estados brasileiros com maior número de igrejas evangélicas na década de 1970, Rondônia passou a figurar entre os cinco primeiros a partir de 2000. Em 2019, existiam 60 igrejas evangélicas por 100 mil habitantes nesse estado.
Crimes não são investigados
Além da omissão do estado e despreparo da polícia, guiada por uma política de segurança pública voltada para repressão e não para prevenção, segundo especialistas ouvidos pela DW, a impunidade é uma variável de peso para o elevado número de feminicídio.
Uma outra pesquisa liderada por Márcia Oliveira no estado de Roraima, que tem a segunda maior taxa de homicídios femininos (10,8), a maioria dos crimes não são investigados pela polícia. Segundo Oliveira, 70% dos casos de feminicídio ocorridos durante a pandemia registrados oficialmente ocorreram em região de garimpo.
“Nenhum desses casos estava com processo de investigação em andamento, eles simplesmente foram arquivados por falta de condições de investigação. Ou seja, não se investiga crimes em área de garimpo”, comenta a pesquisadora.
Muitas das mulheres assassinadas foram levadas para áreas de atividade ilegal na Amazônia para trabalhar na condição de prestadora de serviços gerais, como cozinheira, e de serviços sexuais. “Os crimes ocorrem de forma banal. Uma mulher que fornecia alimentos, por exemplo, cobrou o pagamento da semana. O garimpeiro simplesmente deu um tiro no peito dela, deu as costas e foi embora. Na frente de muita gente. E ninguém retém essa pessoa”, cita um dos casos.
“Quero que ele seja preso”
Já alarmante, o número de mulheres que sofrem violência no Brasil pode estar subnotificado. É por isso que Silvana Mariano, professora na Universidade Estadual de Londrina (UEL) e coordenadora do Laboratório de Estudos de Feminicídios (Lesfem), aposta na metodologia diferente para questionar as informações oficiais.
“Acreditamos que os dados que secretarias de Segurança Pública sejam subdimensionados. Segundo a metodologia que adotamos, usamos predominantemente fontes da imprensa e fontes nos territórios e, a partir dessas, chegamos a outras publicações”, explica Mariano.
Para as pesquisadoras do Lesfem, apenas a contagem do crime não é suficiente, é preciso saber mais sobre as vítimas e as circunstâncias que elas viviam. “Antes de o crime ser consumado como feminicídio, as circunstâncias envolvem violação dos direitos das mulheres que estão atravessadas por diferenças de poder, que favorecem os homens, e que envolvem o menosprezo pelas mulheres”, analisa a cientista.
Para Carla, que sobreviveu à tentativa de feminicídio, o agressor nunca vai desistir de aniquilar a vítima. “Eu queria que ele fosse preso, ele precisa ser parado. É muito difícil falar isso. Minha filha vai sofrer muito. Mas ele tem que ser preso. Como vou viver minha vida se não sei nem onde ele está? Eu quero muito meus filhos perto de mim logo”.
Por Nádia Pontes